domingo, dezembro 31, 2006

Filmes e Sinopses

Falando de Cinema...

"Vivemos numa caixa de espaço e tempo. Os filmes são a janela para o mundo. Eles nos permitem desvendar outras mentes e nos oferecem a oportunidade de ver o mundo como outras pessoas o vêem". François Truffaut.

Principais Estúdios de Hollywood

segunda-feira, janeiro 09, 2006

Análise: Casablanca

Por Carina Rabelo

O filme ‘Casablanca’ cria um universo dramático centrado nas reações humanas diante dos mistérios do amor e de outros sentimentos nem sempre explícitos nos indivíduos, que sofrem diante da constante dialética entre as forças dos sentimentos e as forças da razão. A dimensão lírica do intimismo é dada por um tratamento romântico das personagens e situações, explicando todos os acontecimentos básicos da história em função de estados passionais. A ênfase da película está no olhar, no sorriso e nas manias pessoais dos personagens – como a forma de fumar, o jeito de chorar, o sorriso sarcástico ou tímido, nos trejeitos cínicos, etc.

O filme é ambientado num cenário ambíguo, onde aliados e nazistas se suportam sob a constante iminência de um conflito, numa cidade que serve como uma encruzilhada para espiões, opressores e traidores. A cidade de Casablanca é como os personagens do filme: dual, incompleta e defeituosa, onde se busca, acima de tudo, a sobrevivência. Apesar de a obra permear o episódio da segunda guerra, o filme não fala de guerras, mas de um amor mal resolvido, que ficou em Paris. É importante ressaltar neste filme a utilização das estratégias apelativas das ‘difíceis escolhas, quando o personagem de Humphrey Bogart desiste de Ingrid Bergman para contribuir com a causa da vitória sobre os nazistas. A escolha é enquadrada dentro desta perspectiva de apelo emocional, não por um viés meramente histórico ou social, afinal, não se trata de uma obra realista.

Outro ponto de convergência é a construção dos personagens. Eles não são moralmente impecáveis, não há heróis infalíveis repletos de pureza ou inocência. Os personagens são humanos e cheios de falhas. Rick (Bogart), por exemplo, é apresentado como um homem admirado, respeitado, porém, no íntimo, é uma pessoa desapontada, ferida e ressentida, além de ser alcoólatra e transitar facilmente no mundo da corrupção e agenciar o tráfico de salvo-condutos (documento falsificado que viabiliza a entrada de qualquer pessoa em qualquer país). No entanto, nenhum dos personagens é mau. Alguns são cínicos, outros mentem, alguns matam, mas todos são redimidos.

A música também tem uma relevância especial no toque intimista da obra. A canção “As Time Goes By” é apresentada em diversos estilos durante todo o filme e marca a relação da dupla romântica. O próprio título – ‘enquanto passa o tempo’ – ilustra a história mal resolvida e não solucionada do casal, que apenas será entendida ‘com o tempo’. O fundo musical, acompanhado de uma seqüência de close-ups, mostra a intensidade dos ressentimentos, dos pesares e das lembranças de um amor que foi verdadeiro. Esta música não simboliza nada para qualquer outro personagem, apenas para o íntimo do casal.

Pela perspectiva do intimismo, poderia se esperar um final romântico e feliz. Mas não é o que ocorre. O enredo do filme transcorre por todo tempo valorizando os aspectos dos sentimentos amorosos, mas no final, o que prevalece é um ato de moralidade, quando Rick permite que Ilsa (Ingrid Bergman) fuja com Victor Laszlò (herói da resistência francesa), aproximando-se assim do ‘moralmente bom’, do ‘homem nobre’. Um dos aspectos mais interessantes desta obra intimista são os diálogos econômicos e cínicos e a forma indireta com que os efeitos emocionais são obtidos.

Nos dias atuais, o intimismo se desenvolve com mais força no Japão, onde utiliza consagradas fórmulas do romantismo para elevar as tradições da sociedade nipônica.

Análise: O Anjo Exterminador

Por Carina Rabelo

O Anjo exterminador, filme do espanhol Luis Buñel, se enquadra no movimento do Surrealismo porque obedece aos cânones básicos do estilo, que foi fortemente influenciado pelas teses psicanalíticas de Sigmund Freud. As obras surrealistas mostram a importância do inconsciente na criatividade dos indivíduos e defendem a liberdade da mente humana à lógica imposta pelos padrões comportamentais e morais estabelecidos pela burguesia. Sob esta perspectiva, o filme valoriza os sonhos, as informações do inconsciente e criticam indiretamente a superficialidade da classe burguesa, exatamente como orienta o surrealismo, onde não há uma crítica direta à realidade política e social da época.

Luis Buñel também apresenta uma obra repleta de humor, sonhos, utopias, contrária aos fatos lógicos esperados ao longo da narrativa. Outra semelhança entre o filme e os pressupostos do movimento é a fruição estruturada no conjunto da obra, não em suas partes. O surrealismo considera que o todo é formado tanto pela clareza dos aspectos do consciente como pelos elementos confusos, obscuros e aparentemente ilógicos do inconsciente humano, onde não há hipocrisias ou disfarces dos pensamentos mais proibidos e moralmente condenáveis.

Os fatos apresentados no filme não são explicáveis imediatamente. O entendimento se dá a partir de uma atitude reflexiva do conjunto dos eventos e não se sabe se os fatos são reais ou imaginados. O Anjo Exterminador, assim como os demais filmes surrealistas, assemelha-se a um quadro, que não pode ser fruído em suas partes isoladas, mas no ordenamento do todo – especialmente se o todo for constituído por elementos contraditórios, expostos através dos jogos do inconsciente. Outra característica comum entre os fundamentos do movimento e o filme de Buñel é a presença de uma dialética entre o estático e o dinâmico, que mescla momentos de estabilidade na narrativa com momentos de clímax e dinamismo.

Como estética, o surrealismo quis ir além da mera reprodução da realidade que até o momento imperava. Para o surrealismo toda expressão artística deve referir-se não ao modelo externo, mas sim ao interno, não condicionado por modelos culturais. Para atingir a esse "modelo interior", os surrealistas propuseram uma série de técnicas (automatismo, associações livres, hipnoses, "colagem" etc.), destinadas a liberar o potencial imaginativo e criativo do subconsciente. Os artistas do surrealismo utilizam múltiplos caminhos - sonhos, mitos, fantasias, visões, alucinações - para encontrar a percepção sensitiva e as possibilidades de expressão.

2.1) Elementos de surrealidade presentes no filme:

1)Inexplicavelmente, convidados de um jantar não conseguem sair da casa dos anfitriões, como se uma espécie de ‘força oculta’ os prendesse na sala por uma linha imaginária, exatamente como num sonho. Quantas vezes ‘sonhamos’ como sensações de clausura ou prisão sem que, necessariamente, algo de concreto restrinja a nossa liberdade? É assim que se sentem os personagens do “Anjo Exterminador” – eles jamais se certificam do fato de que não podem sair e já se conformam tacitamente com a situação de ‘feitiço’.

2)Comportamentos ilógicos: o cozinheiro e os empregados tiram de repente seus uniformes e fogem da casa enquanto os convidados estão chegando.

3)A anfitriã planejava um jantar cujos pratos principais seriam um urso ou um carneiro. No entanto, os animais estão vivos e transitam normalmente pela casa.

4)A bolsa de uma das convidadas está recheada de penas de galinhas e unhas de galo.

5)Os convidados ‘presos’ na casa resolvem dormir no chão e nos sofás da sala de estar. Para contrastar com o absurdo, o filme coloca ‘inserts’ da fachada da residência, mostrando que a propriedade é grande e que possui diversos cômodos, portanto, não haveria necessidade das pessoas dormirem amontoadas na sala.

6)Soldados são chamados para invadir a casa, porém não conseguem. Um corajoso garoto tenta entrar na casa, mas volta correndo. É como se existisse um portal que inibisse a passagem tanto dos convidados como dos seus salvadores.

7)Alguns convidados pegam um machado e abrem um buraco na parede para abrir um cano, em busca de água para beber.

8)Dois amantes se suicidam e os corpos são empilhados num quarto.

9)Todos os convidados abrem uma mesma porta que os leva a um tipo de ‘universo paralelo’, onde desfrutam de visões e alucinações. No entanto, não se sabe o que se passa de fato por de trás daquela porta.

10)Uma mão solta começa a perseguir uma mulher, que, no momento clímax da cena, acorda gritando. Não se sabe se foi sonho ou se aquela mão assustadora de fato existiu.

11)Um carneiro aparece na sala. É morto e preparado numa fogueira feita com a madeira dos móveis. O mordomo convida uma das senhoras presentes a saborear com ele bolinhas de papel distribuídas numa bandeja de prata.

12)Crítica à burguesia: os convidados sussurram maledicências sobre os demais participantes, com olhos ávidos cruzando uns aos outros, cheios de inveja. No entanto, todos, pelo menos aparentemente, se comportam como amigos. Um médico, indiscretamente, comenta que uma das convidadas ficará careca em uma semana.

13) No momento de intensa fome e privações, os burgueses se comportam exatamente como mendigos e miseráveis, atacando qualquer coisa comestível e brigando por alimento, mas continuam criticando e zombado os menos favorecidos.

14) Em busca de um retorno à realidade, os convidados refazem todas as ações que foram feitas até o início de toda a loucura e - num processo semelhante ao da hipnose - conseguem tranquilamente sair da casa, como se tudo não passasse de um tenebroso pesadelo.

15)Quando os personagens vão à igreja, o processo recomeça e todos ficam presos novamente. Neste momento, nem mesmo os cordeiros conseguem entrar no local. Diversos simbolismos podem ser destacados aí. O título do filme remete à presença metafórica de um anjo exterminador – que poderia ser lúcifer – e os cordeiros desgarrados dos seus pastores – que são os burgueses enclausurados.

Análise: Acossado

Por Carina Rabelo

O filme “Acossado”, de Jean-Luc Goddard, modificou os padrões cinematográficos da época - como a unidade da montagem e do roteiro, a continuidade dos diálogos e a sutileza dos cortes. O filme instaura a quebra narrativa, prioriza cenas ágeis, utiliza ângulos de câmera fora do comum, testa edições elípticas e introduz cortes rápidos – o que influenciou bastante o cinema americano dos anos 60 – mas, ainda assim, mantém espaço para a reflexão. No entanto, é importante frisar que o aspecto mais relevante deste filme não está no seu conteúdo, mas na sua forma inovadora – o “modo” de contar a história.

A metalinguagem é outra característica marcante da obra, que, por diversos momentos, faz referências a outros filmes, atores, diretores e diversos elementos do mundo do cinema. É como se a obra não estivesse tão preocupada em ‘contar uma história’, e se ocupasse mais da experimentação das diversas possibilidades fílmicas, através de um ousado roteiro e de uma montagem inovadora - que chega a gerar algum estranhamento ou repulsa na apreciação. Até então, nada igual tinha sido feito no cinema.

O filme propõe uma ruptura com o modelo tradicional da narrativa literária e defende que o cinema tem que explorar as múltiplas possibilidades do formato do filme, e não as gastas estratégias poéticas da literatura.

Acossado provou aos cineastas da época que era possível cortar um plano-sequência e mostrar o que estava cortado. Era possível mostrar o mesmo plano duas vezes. Era possível experimentar, criar e sair dos eixos do cinema clássico. O cinema foi tratado ineditamente como um material plástico maleável, cuja forma ultrapassava os limites da imaginação. Pela primeira vez, percebia-se conscientemente que o cinema é um instrumento de expressão artística, sem limites, e que o apreciador deve obedecer às condições de fruição específicas que o formato exige.

Um outro aspecto inovador importante é a introdução do anti-herói como protagonista do filme (não há o maniqueísmo do bem x mal), e a quebra dos perfis tradicionais do ‘herói cinematográfico’. Michael Poiccard, protagonizado por Jean-Paul Belmondo, era um ladrão moralmente condenável, não tinha características admiráveis e nem mesmo era bonito - principalmente quando comparado ao estilo de beleza greco-romana exaltada pelos filmes de Hollywood. E assim, Poiccard era perfeito como ‘herói’ da Nouvelle Vague, como um homem comum, um homem contemporâneo. O estilo do filme tem um profundo efeito na história do cinema e abre caminhos para uma estética mais livre e pessoal.

Análise: Encouraçado Potenkim

Por Carina Rabelo

“O que importava para Eisenstein não era a reprodução naturalista do mundo sensível, mas a articulação de imagens entre si, de modo que a sua contraposição ultrapassasse a mera evidência dos fatos, gerando sentido”.

Com esta afirmação, o crítico cinematográfico Arlindo Machado define com clareza a essência da obra de Eisenstein. Para o cineasta, a produção de sentido se configura na forma, no modo como se conta uma história. Desta maneira, Eisenstein consegue provocar sensações através da materialidade fílmica e do jogo rítmico proporcionado pela montagem. Toda a produção de sentido na seqüência da ‘Escadaria de Odessa’ se fundamenta na linguagem simbólica, habilmente ilustrada pela utilização de elementos de contraste – um plano como o negativo do outro – e nos recursos metafóricos.

Através da descontinuidade, Eisenstein brinca com a “realidade” e inaugura um estilo de montagem que inverte fluxos de movimentos e surpreende o expectador a cada cena. “Eu não sou realista, sou materialista, acredito que a matéria provoca em nós sensações”, já dizia o cineasta.

A seqüência “A Escadaria de Odessa” tem 11 minutos. Nela se desenrola o massacre do povo de Odessa pelos cossacos - guarda imperial do Czar russo. Mulheres, crianças e homens desarmados são aniquilados sem qualquer economia dramática. Eisenstein procura mostrar simbolicamente como se inicia e desenrola a revolução socialista. As referências à estratificação social russa e a utilização de diversos signos simbólicos faz com que se reproduza em torno do filme todo o movimento social do país.

Tudo começa com os barcos da cidade se dirigindo até o Potemkin para levar suprimentos aos marinheiros. Na seqüência dos barcos, além dos diversos enquadramentos explorados (principalmente os planos geral e de detalhe), percebe-se que a câmara vai para o lado esquerdo enquanto os barcos encaminham-se para o lado direito, o que gera um ‘estranhamento’ visual, como já comentava Arlindo Machado no texto.

Na seqüência seguinte, quando já aparecem os moradores de Odessa acenando para o Potemkin, percebe-se uma contradição da realidade, pois os barcos com suprimentos navegam por um longo caminho até chegar ao Encouraçado, o que prova que a embarcação ainda está em alto-mar, e bem longe dos moradores. Mas as pessoas acenam como se o navio estivesse bem próximo a elas. Portanto, comprova-se nesta seqüência a observação feita por Arlindo Machado.

“Eisenstein não estava interessado na verossimilhança dos eventos: interpretar a história era para ele mais importante do que simplesmente restituí-la”.
A escolha das vestimentas em clara oposição entre o preto e o branco ilustra a intenção dialética da narrativa. A utilização de metáfora também é constante em toda a seqüência. No momento em que os barcos chegam ao Potemkin, há um sincronismo entre os gestos de reverência dos cidadãos e o “descer da vela” dos barcos que se aproximam da “grande embarcação”.

Apesar de a cena anterior ocorrer em alto-mar, abruptamente, surgem os moradores da cidade já tendo acesso ao Potemkin. O corte “engole” a chegada do navio ao cais. A economia de “imagens desnecessárias” contribui para que a seqüência não se renda à monotonia.

Ainda nas manifestações de acolhimento da população, registra-se a presença de membros de todas as classes sociais e de todas as idades. Crianças, velhos, adultos, pobres, ricos, brancos e, até mesmo um negro deficiente, unem-se para saudar o Encouraçado, que se apresenta neste momento como o símbolo de uma “Rússia Unida”, onde não há distinção de classes. A criança apreensiva é aconselhada pela mãe a saudar a embarcação. Nesta cena, há um corte para a bandeira branca hasteada no Potemkin, como um ícone de paz. A criança então presta as homenagens. Mais uma vez, destaca-se a presença do jogo metafórico.

No momento da chegada dos cossacos não se vê os soldados, mas a trilha sonora encarrega-se de produzir o efeito do tiro, que, abruptamente, abate um dos cidadãos. Uma mulher com um guarda-chuva branco corre até a câmera e ‘cobre’ a cena, como se solicitasse aos expectadores “proteção”, diante da iminência do massacre.

Surgem então os cossacos. A câmara os registra de costas, em 2º plano a uma estátua negra que parece os abraçar. A estátua poderosa simboliza o poder central, o Czar. Encurralados, os moradores de Odessa correm em direção ao mar. Na queda de dois homens atingidos pelos tiros cruéis, a câmara registra a mesma cena por dois ângulos distintos, enquanto uma criança fica cercada pelos corpos caídos, absolutamente sem saída.

Uma seqüência brilhante de enquadramento mostra uma câmara suspensa que corre pelas escadarias e acompanha o movimento nervoso dos cidadãos encurralados. Como não havia trilhos de travelling e muito menos gruas, são surpreendentes as possibilidades exploradas por Eisenstein, que utilizou com maestria a câmera subjetiva nesta seqüência. Nota-se também aí o descarte da verossimilhança, uma vez que a escada parece nunca acabar, pois as pessoas correm e não chegam a lugar nenhum (o contraposição entre o tempo da narrativa e o tempo da realidade).

O jogo de oposições em conflito, apontado por Arlindo Machado, fica claro no momento em que os cidadãos em pânico correm em direções contrárias e atravessadas. Não há mais união aqui, pois cada um luta famigeradamente pela sua própria sobrevivência. O pavor é tamanho que até mesmo uma mãe, que tenta fugir com o filho da mira das baionetas sanguinárias, apenas percebe que a criança ficou para trás após algum tempo. Nesta cena, um inesquecível semblante surge no rosto daquela mulher, que presencia o desfalecimento do seu filho e o posterior atropelamento do corpo pelos demais, que ainda têm esperança de permanecerem vivos. É comum o close no rosto dos cidadãos, mas não se vê o rosto dos cossacos, pois eles não são personagens em si, são apenas símbolos de um sistema político vigente, opressor e cruel.

Surge então uma das mais belas cenas do filme. A mãe, em prantos com o seu filho ferido no colo, solicita aos cossacos que poupem a população. A cena, numa perspectiva alegórica, faz uma clara referência ao fato histórico real conhecido como o “estopim da revolução russa”. O faminto e miserável povo russo acreditava que o Czar Nicolau II não sabia que eles passavam fome e viviam na miséria. Portanto, decidiram escrever uma carta mostrando-lhe a situação, na esperança de que o imperador se sensibilizasse e os ajudasse. No entanto, ao receber a carta, o Czar considerou a iniciativa uma insolência e ordenou aos cossacos o imediato extermínio de todos. Os cossacos se postaram e, ao grito de permissão para atirar, massacraram toda a população. A cavalaria completou o extermínio cegando, com furos nos olhos as crianças e mutilando o ventre das mulheres grávidas. A seqüência da Escadaria de Odessa faz uma representação exitosa deste fato histórico.

Os cossacos se aproximam impiedosos numa marcha única e quase robótica. A mulher esbarra-se com a sombra dos soldados que, justapostas, formam uma espécie de grade negra. Ela, espontânea como o povo, chora e solicita por trégua. Os soldados, frios e impessoais como o estado russo, desprezam a solicitação. Como diz Arlindo Machado:
“O movimento que comanda as botas dos soldados do Czar não é o resultado da soma das selvagerias individuais, mas o efeito de uma ordem (social e política), ela própria monolítica, hierárquica e autoritária”. Apenas aí são apresentados os personagens cruéis ao expectador. Após o fuzilamento da mãe desesperada, surge a legenda: “Os Cossacos”, o que presume que o termo em si já explica historicamente a crueldade narrada.

Outro recurso metafórico é utilizado na cena da mãe que leva o seu bebê num carrinho. Quando recebe um tiro na barriga, a mãe, num ato de absoluta consternação, passa a mão sobre o seu ventre e, num olhar de desalento, presume a inevitável morte do seu filho, que estará desprotegido a partir de então. Mesmo sob a ameaça generalizada, os cidadãos mostram-se estarrecidos e indignados com o deslizamento gradual do carrinho de bebê pelas escadas, mostrando que, mesmo nas piores situações, há solidariedade entre os humildes.

A única cena em que aparece o rosto de um cossaco é justamente no assassinato do bebê, quando o soldado dá um golpe fatal na câmera, como se liquidasse o próprio expectador com o gesto cruel.

Mais uma vez, utilizando o recurso de economia das imagens, a montagem deixa implícito que não havia sobrevivido nenhum cidadão em Odessa, quando surge o Encouraçado Potemkin e destrói toda a cidade. Subentende-se assim que apenas os cossacos estariam vivos para serem destruídos pela ira dos canhões da embarcação. Alegoricamente, pode-se interpretar a partir desta seqüência que a guerra entre o Estado e o povo levará, inevitavelmente, à destruição de ambos.

“As intervenções abruptas e violentas da montagem eisensteiniana quebram a ‘objetividade’ simulada, comprometendo portanto a ilusão de ‘realidade’: a técnica aparece, os recursos se mostram abertamente, o cinema se exibe como produção de sentido”.

A Importância de Eisenstein no Cinema

Eisenstein é considerado uma das grandes referências da técnica da montagem no cinema, sendo a mesma responsável pelo vigor dramático de seus filmes. O cineasta propõe o uso constante da montagem por ele chamada de intelectual, a qual propunha o conflito e a justaposição de planos significativos paralelos.

Foi o precursor da oposição à narrativa e à estética clássica naturalistas. A estrutura convencional dos filmes de sua época seria substituída pela “montagem intelectual” ou “pensamento sensorial”. Neste tipo de montagem, Eisenstein introduz metáforas e elementos simbólicos na linguagem cinematográfica.

Através do manifesto “Perspectivas”, Eisenstein propõe a justaposição de imagens como uma maneira de expressão. Além disso, fez experimentos na linha de Pavlov, utilizando os recursos materiais do filme para explorar a biomecânica, como uma espécie de “espontaneidade condicionada”, testando a reação dos expectadores. Isto nunca havia sido feito no cinema.

Eisenstein também introduziu a idéia de que o efeito provocado pela justaposição de imagens é maior do que a soma destas imagens, por isso valorizava tanto as montagens. Ele também introduziu os pensamentos da dialética de Hegel nas suas produções cinematográficas. Ele foi o grande construtor de conceitos abstratos partindo de elementos concretos.

Em 1926 a Academia Americana de Artes elegeu o Encouraçado Potemkin como o "melhor filme do mundo" e em 1958, a Exposição Internacional de Bruxelas considerou-o "melhor filme de todos os tempos e de todos os povos". Estas homenagens elevam Eisenstein ao rol dos grandes ícones da história do cinema e o caracteriza como o pai da montagem inteligente.

Impressões pessoais

Acho incrível a combinação de símbolos nesta obra, principalmente quando levamos em consideração que ela foi realizada no início do século XX. Apesar de podermos perceber as técnicas inauguradas pelo Potemkin aperfeiçoadas na atual produção cinematográfica, talvez, a abundância dos atuais recursos técnicos tente substituir o papel da dimensão simbólica na arte cinematográfica, ao contrário de enriquecer as possibilidades exploradas por Eisenstein.

Neste filme, acho que o cineasta faz uma boa crítica da violência, tratando-a como uma espécie de aberração que deve ser socialmente recusada, ao contrário da produção americana, que coloca a violência como uma característica essencial do homem.
Gosto da idéia de não existir um único herói no Potemkin, já que no filme o herói é a massa, o povo, a coletividade. Estamos acostumados com filmes de Hollywood, onde os heróis são "personalizados" num formato quase caricatural. Quando vi pela primeira vez o Encouraçado Potemkin, não tinha muita maturidade para fruir a obra. Agora, me considero mais capaz de analisá-la. Porém, até hoje, permanece a aflição com a cena do carrinho de bebê, talvez já como um resultado dos reflexos condicionados explorados pelo cineasta.

domingo, janeiro 08, 2006

Análise: Ladrões de Bicicleta

Por Carina Rabelo

O filme "Ladrões de Bicicleta" é considerado um dos maiores expoentes de um movimento cinematográfico italiano conhecido como "Neo-realismo". A principal característica do neo-realismo é abordar a realidade diária, o cotidiano e as dificuldades das classes menos favorecidas de maneira simbólica, inaugurando um estilo intermediário entre o real e o documentário. Procurava-se “filmar com estilo uma realidade não estilizada”, o que provocou uma profunda mudança estética e ideológica no cinema. Os atores não eram profissionais, na maioria das vezes, eram pessoas comuns selecionadas no meio da rua.

A carência de recursos e a indisponibilidade de estúdios obrigavam os diretores a filmar em externas, nas avenidas e becos da cidade - utilizados como cenário para o desenvolvimento da trama - e optar por iluminação natural e equipamentos portáteis, numa mistura de verdade e imitação, mas tudo feito com simplicidade. Apesar dos roteiros se inspirarem em técnicas do romance americano, o protagonista sempre era um personagem simples (em oposição às intrigas clássicas vinculadas a heróis extraordinários). O neo-realismo provou que era possível fazer filmes de qualidade, mesmo sem um grande investimento financeiro, numa oposição clara às superproduções norte-americanas ou italianas – anteriores à guerra.

Também era uma característica do neo-realismo a crítica à indiferença e à crueldade das autoridades com o povo. Mostrava concretamente e sem economia dramática as duras conseqüências sociais do regime fascista. É marcado por uma forte crítica ao confronto existente entre a sociedade de consumo e a classe pobre, explicitando as contradições e propondo um novo modo de abordagem estética dos diversos elementos fílmicos. O neo-realismo foi responsável por uma grande ruptura com as convenções artísticas e sociais da época.

O humanismo de "Ladrões de Bicicleta" não descaracteriza o aspecto documental porque a realidade não exclui o ser humano e os seus sentimentos. A idéia de objetividade dos “documentos históricos” jamais poderá ser entendida como total e absoluto distanciamento humano do fato, visto que não há história sem a participação simbólica dos indivíduos. Neste sentido, é fundamental diferenciar os conceitos “realidade” e “real”. Designa-se por real o que “existe por si mesmo” e “o que é relativo às coisas”. A realidade, em compensação, é a experiência do real vivida pelos diversos sujeitos, mas está inteiramente situada no campo do imaginário. Como já dizia o crítico André Bazin, “o realismo no cinema se baseia, não em uma noção física da realidade, mas em uma noção psicológica”. O cinema trabalha com a realidade simbólica, não com o real, mas nem por isso deixa de servir como “documentação” da história.

O filme não peca pelo humanismo, mas pela caricatura “moralista” e pela tendência ao exagero nas “tragédias” vivenciadas pelos personagens. Ricci, protagonista que tem sua bicicleta roubada, é representado como um ser humano de índole “impecável”, pois, apenas no último momento - depois de esgotadas todas as tentativas, algumas até folclóricas, de recuperar sua bicicleta – ele pensa na possibilidade de roubar o veículo. E esta decisão não vem fácil, resulta de um “dilema quase insuportável”, quando o “herói” leva horas andando de um lado para outro até tomar coragem para praticar o furto. E, desastrosamente, no momento em que decide fazê-lo, toda a cidade de Roma parece assistir à cena e, em conjunto, os cidadãos saem em sua captura.

Furiosos e indignados, todos estão dispostos a surrar o ladrão e fazê-lo pagar pelo ilícito. No entanto, em diversas cenas em que Ricci localiza a sua bicicleta roubada, ele clama por ajuda, grita, esbraveja, mas ninguém faz nada. De certa forma, a narrativa centraliza todas as tragédias humanas sobre um único personagem, algo que não ocorre na realidade, onde as diversas dores são diluídas entre os indivíduos. O tom melodramático e o enquadramento caricatural, de certa forma, colocam em xeque a “verossimilhança” do realismo do filme.

Os conflitos vivenciados pelos personagens são representados de maneira crua, sem grandes produções cinematográficas, e ilustram com propriedade a realidade das classes menos favorecidas - daqueles que estão à margem do poder e foram esquecidos pelas autoridades. A temática é universal, pois os conflitos sociais abordados pela obra não são exclusivos da Itália pós-guerra – são, acima de tudo, marcas da sociedade humana.

A utilização de metáforas e símbolos salvam a narrativa do tédio e garantem a dinâmica rítmica. A analogia metafórica entre os inúmeros lençóis empilhados na casa de penhor e a grande fila de miseráveis à espera de “alguns trocados” mostra que a situação de pobreza vivenciada por Ricci era comum naquela Itália.

O filme também faz críticas sutis e implícitas ao contraste social entre a superficialidade burguesa e a miséria dos operários, quando contrapõe a imagem da bela Rita Hayworth nos cartazes de cinema e a maçante tarefa de pregá-los nas sujas paredes do subúrbio; ou quando mostra a criança abastada devorando os pratos mais finos do restaurante e o faminto Bruno, que saboreia parcimonialmente seu pequeno “Bife a Parmeggiana”.

O filme também se enquadra na estética realista quando opta por atores não-profissionais, ambienta a trama nas ruas e praças da cidade de Roma e pontua temáticas universais, como o homem que ama a sua família e quer sustentá-la; o ciclo de roubos e miséria como resultado da má distribuição de renda numa sociedade; e as privações financeiras de um indivíduo como porta de entrada do mesmo para a criminalidade. A obra também contrasta com as produções cinematográficas feitas até aquela época (1948), que privilegiavam na temática central o enfoque burguês.

“Ladrões de Bicicleta” reivindica a construção de um mundo imaginário que produz um forte efeito de real, mas procura também recuperar uma capacidade de idealidade, para dizer alguma coisa sobre o real, e não apenas sobre a realidade momentânea.